A formação do Pajé

A palavra tupi-guarani que, entre nós, designa o xamã é pai’é, grafada em português como pajé. Embora exista uma surpreendente uniformidade nos procedimentos dos xamãs, ocorre uma grande diversidade de explicações para o surgimento dos mesmos. Em alguns casos, a explicação é a hereditariedade, ou seja, somente podem ser xamãs os descendentes de um outro.

No caso tupi-guarani, o fator hereditário não é necessário. Acredita-se que se trata de um dom que deve ser descoberto e desenvolvido através do aprendizado. Entre os assurinis, do Rio Tocantins, constatamos a existência de um ritual denominado opetimo (literalmente: comer fumo) que tem como objetivo identificar, entre os jovens, aqueles que têm o potencial de se transformar em um pai’é. Entre cantos e danças, os candidatos fumam um grande charuto de tabaco, engolindo a fumaça. Os que se sentem mal, ou seja, têm ânsia de vômitos, são descartados. Os que desmaiam são os escolhidos. “Omano”, grita o pai’é oficiante do ritual, ou seja: “ele morreu”. É “morrendo” que se faz a viagem para o outro mundo, o que torna possível o contato com os antepassados.
A maior parte do trabalho dos xamãs consiste em efetuar curas através do controle dos espíritos que provocam as doenças e, até mesmo, a morte.
O texto seguinte descreve como uma cura é efetuada:
“Os pajés preferem curar à noite, uma das razões é que assim garantem uma audiência, o que seria difícil durante o dia, quando muitos estão para as roças. O pajé inicia a cura cantando as canções daquele sobrenatural que o seu inquérito leva a considerar como provável. Acompanha a si mesmo, marcando o ritmo da canção como uma batida forte de pé chacoalhando o maracá. Dança em volta do paciente; em geral, a família deste e alguns dos circunstantes o acompanham. A esposa ou um ajudante preparam-lhe os cigarros feitos de folhas de fumo enroladas em fibra de tawari. Um ajudante toma o maracá e o pajé preocupa-se daí por diante com a cura propriamente dita. Chupa repetidas vezes no cigarro para soprar a fumaça em suas mãos ou no corpo do paciente. Afasta-se para um lado e chupa no cigarro até que, meio tonto, recua de súbito e leva as mãos ao peito, o que indica ter recebido o espírito em seu corpo. Sob a influência do espírito o pajé comporta-se de maneira peculiar. Se é espírito de macaco, por exemplo, dança aos saltos, gesticula e grita como esse animal. O transe se prolonga enquanto o espírito está forte. Algumas vezes o espírito ‘vem forte demais’ e ele cai ao chão inconsciente. É durante o transe, enquanto está possuído pelo espírito, que o pajé cura” (cf. Wagley & Galvão, 1961).
É comum que o xamã chupe uma parte do corpo do paciente e, em seguida, mostre um pequeno objeto, que teria retirado de dentro do mesmo. No caso tenetehara, relatado acima, o pajé escondia esse objeto dentro da mão para fazê-lo desaparecer depois.
Mas é na direção dos rituais coletivos que o xamã demonstra o seu prestígio junto ao grupo. Gostaríamos de descrever um ritual a que assistimos entre os suruís, do sudeste do Pará.
O Ahiohaia ocorre na primeira lua cheia, depois da queimada da roça. A providência inicial para a sua celebração é o erguimento de uma casa cerimonial no centro do pátio da aldeia. Ela é toda fechada com folhas de palmeira tendo, apenas, uma pequena porta. Essa casa, que recebe o nome de tokasa (esta mesma palavra significa “tocaia”), é a representação da itakuara (literalmente “buraco na pedra”, caverna onde vivem os karuara). Enquanto durar a lua cheia, os homens, devidamente pintados com tinta de jenipapo, participam de uma dança que se realiza desde o nascer do sol até cerca de duas horas mais tarde. Recomeçam ao entardecer, com a mesma duração, até o pôr-do-sol. Nesse período é interditado aos participantes deixar a aldeia, por qualquer motivo, não podendo banhar-se nos riachos e principalmente entrar na floresta. Somente determinadas pessoas podem participar da caça e ir ao igarapé buscar a água necessária, inclusive, para o banho dos participantes. Acredita-se que o xamã, além de atrair os karuara – uma variedade de seres sobrenaturais –, atrai também as almas dos antepassados das pessoas presentes no ritual. De fato, uma das canções entoadas no início do ritual possuía um estribilho que era precedido pelos nomes de todos os antepassados que ainda constam da memória do grupo. No final do ritual, a casa é desmanchada e o material jogado bem longe no mato.
A enorme dispersão dos povos tupi-guaranis por uma imensa área geográfica, conjugada com um longo isolamento, provocou diferentes transformações em seus sistemas de crenças. Procuramos, neste trabalho, acentuar mais as semelhanças do que o contrário. Mas é preciso alertar o leitor que em muitos pontos ainda existe, por parte dos diversos pesquisadores, uma incompreensão do sistema religioso, o que demanda mais pesquisas. Um desses pontos refere-se à noção de alma. Em sua denominação mais usual, provavelmente referindo-se apenas à alma de um homem vivo, o termo utilizado é owera. Uma outra denominação refere-se aos espíritos dos mortos, asonga. Entre os kaapor, a palavra utilizada para este caso é anhang, que freqüentemente é traduzida como “diabo”. Diferentemente dos karoara, que são espíritos independentes dos homens, os asonga interferem nos sonhos dos vivos, perambulam pela floresta, podem ser vistos, tornando doente quem tiver a infelicidade de encontrá-los. Mas não vagam eternamente pelo mundo: ao contrário, a sua permanência é curta e um dia atingem o “céu”, através da itakuara. Lúcia Andrade (1992), que trabalhou entre os assurinis do Tocantins, obteve as informações que esclarecem a confusão entre owera e asonga:
“[o pajé] aprende as canções nos sonhos com os mortos, com seus espectro-terrestres, denominados asonga. Ao morrer, o ser humano divide-se em espírito-celeste (que se dirige à aldeia dos mortos e com o qual não se tem mais contato) e em espectro-terrestre, que vive na mata e ronda a aldeia […]. Há uma clara identificação entre o asonga e a personalidade do morto; não se trata de uma manifestação repetitiva e impessoal. Os laços de parentesco e amizade parecem inclusive perpetuar-se”.
Utilizamos a palavra “céu” para indicar o local onde vivem as almas dos antepassados e o herói mítico e principal ancestral, Mahyra. Existem divergências a respeito desse local: os suruís e os assurinis referem-se a uma região acima das nuvens, a que se chega através da itakuara. Os guaranis preferem se referir a uma “terra sem males”. Nimuendaju colheu uma descrição entre os apopokuvas:
“Perto da casa de Mahyra está uma grande aldeia. Seus habitantes vivem magnificamente. Para seu sustento diário necessitam apenas de algumas pequenas frutas semelhantes à cuia: ela se planta e se colhe sozinha. Mahyra e seus companheiros no campo de ikawéra têm o nome de karoara. Quando envelhecem não morrem, mas tornam-se novamente jovens. Cantam, dançam e celebram festas sem cessar”.
É difícil definir o que sejam os karoara. Wagley e Galvão (1961) concordam em parte com Nimuendaju:
“Os Tenetehara se referem aos sobrenaturais pela designação genérica de karoara, porém os distingue pelo menos em quatro categorias: criadores ou heróis culturais (Mahira, Mukwani, Tupã e Zurupari); os donos das florestas, das águas e dos rios (Ywan, Maranaywa); os azang, espíritos errantes dos mortos; e os espíritos de animais (piwara)”.
A nossa interpretação, resultante de trabalhos entre suruís e assurinis, nos levou a considerar os karoara como espíritos especiais que podem causar doenças ou mortes. Nas situações de cura, os pai’é os retiram do corpo do doente, podendo também fazer o mesmo com os asonga. Entretanto, outros pesquisadores chegaram a conclusões diferentes. Lúcia Andrade considera que o karoara é uma espécie de força através da qual o pai’é recebe a sua força, desde que ela lhe tenha sido transferida pelo espírito-onça. Segundo Andrade (1992), “possuir a força implica em responsabilidade e perigo. Caso uma série de cuidados não sejam observados o karoara pode matar o seu próprio dono, ou ainda outros indivíduos”. Compete aos pai’é retirar dos homens o karoara, quando este ameaça a sua integridade. É semelhante a explicação de Antônio Carlos Magalhães (1994), que estudou os parakanãs do Tocantins, com a diferença que, nesse caso, o karoara aparece mais como uma força negativa. Em todo caso, torna-se necessário um estudo comparativo mais aprofundado sobre o tema.
por Roque de Barros Laraia

Editado por Bacana
Texto original: http://www.usp.br/revistausp/67/01-laraia.pdf

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